Rquiem
para uma Constituio
18221 Fbio Konder Comparato
1. As Constituies republicanas
duraram pouco neste Pas. A mais longeva foi a primeira, que
vigorou durante 39 anos. At o final do regime militar, nenhuma
delas morreu placidamente: todas foram aniquiladas por atos de fora.
A atual, moribunda j h algum tempo, provavelmente no chegar
ao dcimo aniversrio: sua morte, sob a forma de uma extempornea
reviso, j foi anunciada para os primeiros dias de outubro de
1998. As Ordenaes do Reino de Portugal, que vigoraram entre ns
por muito tempo, mesmo depois da Independncia, cominavam dois
tipos de pena capital: a morte natural e a morte espiritual. A
primeira atingia o corpo, a segunda a alma. O excomungado
continuava a viver, mas s fisicamente: sua alma fora executada
pela autoridade episcopal, aliada ao brao secular do Estado.
Algo de semelhante est em vias de suceder com a Constituio
Federal de 5 de outubro de 1988. Ela continuar a fazer parte,
materialmente, do mundo dos vivos, mas ser um corpo sem alma.
Todos ns, profissionais do direito, becados ou togados,
continuaremos, por dever de ofcio, a fazer de conta que vivemos
num Estado constitucional. Mas as nossas argumentaes tomaro,
fantasticamente, o aspecto de sbias dissecaes anatmicas:
sero anlises de um cadver. Para o pensamento da Grcia clssica,
um Estado no vive sem constituio (politia). Ela a alma
da plis, como disse Iscrates. Tem "o mesmo poder do
pensamento no corpo: ela que delibera sobre tudo, que conserva
os xitos e procura evitar as desgraas; ela que deve servir
de modelo s leis, aos oradores e aos simples
particulares"1. Se a "alma da plis" vai ser
executada, importante que se saiba quem ser esse assassino
espiritual de nossa Constituio. Para dizer a verdade, so vrios.
o conjunto dos Poderes da Repblica, sem exceo alguma: o
Executivo como autor principal, eficazmente acolitado pelo
Congresso Nacional; os tribunais superiores, liderados pelo
Supremo, com o acumpliciamento solcito do Procurador-Geral da
Repblica. Belo corpo de rus para o juizo final de um regime !
2. A politia, na Grcia clssica,
designava primariamente tanto a esfera da vida privada, quanto a
vida pblica dos cidados. Secundariamente, ela era a organizao
das diferentes magistraturas no sentido antigo, isto , dos
agentes pblicos aos quais o povo devia obedincia2. O
fundamento dessa organizao constitutiva da plis era a
autoridade da tradio e das leis fundadoras. Na poca moderna,
a idia de Constituio tomou um sentido bem diverso,
marcadamente funcional: ela existe para proteger o ser humano,
mesmo o indivduo mais rprobo e hediondo, contra o abuso de
poder. A Constituio moderna um instrumento de defesa dos
governados contra os governantes. Se ela no exerce esse papel,
se ela se limita a suprimir os freios ou obstculos ao exerccio
do poder em nome da governabilidade, no se est diante de uma
Constituio. Por isso mesmo, no momento decisivo de abolio
do ancien rgime, os revolucionrios ses definiram
lapidarmente: "Toda sociedade, em que a garantia dos direitos
no assegurada, nem a separao de poderes determinada, no
tem constituio" (Declarao dos Direitos do Homem e do
Cidado de 1789, art. 16). Ora, no regime democrtico, o
atributo maior da soberania popular consiste em constitucionalizar
a nao. O poder constituinte pertence ao povo e somente a ele.
E esse poder indelegvel, como a prpria soberania. Imaginar
que no o povo, ou seus representantes especiais, eleitos para o
exerccio dessa tarefa exclusiva, mas sim os prprios
governantes possam dotar o pas de uma Constituio, ou
reformar a que est em vigor, um despautrio lgico e poltico.
"Em cada uma de suas partes", lembrou Sieys, "a
Constituio no obra do poder constitudo, mas do poder
constituinte. Nenhuma espcie de poder delegado pode mudar coisa
alguma nas condies de sua delegao"3. Isto seria a
mais abominvel das usurpaes: a transformao do poder poltico
inferior, delegado pelo povo ao governantes, em poder poltico
soberano destes. Tanto mais que nem o povo soberano pode
descumprir a Constituio que deu nao. E no entanto, a
apropriao indbita do poder constituinte vem sendo praticada
quase cotidianamente pelos nossos governantes, a modo de um crime
continuado. Os ladres da soberania popular so, decididamente,
cleptomanacos polticos.
3. O iter criminis tem seu ponto de
partida no Poder Executivo, mais especificamente no Presidente da
Repblica. Ao copiarmos o modelo norte-americano, em 1891,
erramos no estilo: o tencionado retrato saiu uma caricatura. A
Constituio dos Estados Unidos criou o regime presidencial; ns
engendramos o presidencialismo, que a sua perverso mxima. L,
o equilbrio dos Poderes republicanos funciona harmoniosamente,
num engenhoso mecanismo de checks and balances que faz inveja aos
mais competentes relojoeiros. Aqui, a hipertrofia dos poderes
presidenciais gerou um monstro macroceflico, cujos membros so
todos absorvidos pela cabea. Para sermos justos, porm,
preciso reconhecer que essa aberrao institucional no surgiu
com a repblica, pois ela j estava presente e atuante durante
todo o perodo imperial. O que se fez to s, com a derrubada
da monarquia, foi uma adaptao semntica: amos do imprio
autntico ao presidencialismo imperial. Na obra clssica em que
fez o panegrico do pai, Joaquim Nabuco apenas uma vez
permitiu-se censur-lo. Foi a propsito de uma Circular de 7 de
fevereiro de 1856, pela qual o velho Senador, em sua qualidade de
Ministro da Justia, entendeu de ditar regras de julgamento aos
magistrados. " o trao saliente do nosso sistema poltico",
escreveu Joaquim Nabuco, "essa onipotncia do Executivo, de
fato o Poder nico do regime". "Apesar de todo o
antogonismo de muitas de suas idias com esse sistema,
principalmente em matria de garantias individuais e apesar da
guerra que moveu invaso sa do contencioso
istrativo, (Nabuco pai) foi um dos fundadores da onipotncia
do governo, convertido em ltima instncia dos poderes pblicos".4
A Repblica acentuou ainda mais a onipotncia do Chefe do Poder
Executivo, ao cobri-la com o manto da irresponsabilidade, que a
Constituio de 1824 reservava ao Imperador.5 Logo nos primeiros
anos do regime que ajudara a criar, Rui Barbosa tomou como mote a
irresponsabilidade presidencial, para traar em cores fortes o
quadro dessa anomalia institucional.6 Convm reproduzi-lo:
"Ningum aqui se importa", denunciou ele, "com as
ditaduras presidenciais. Ningum se assusta com as ditaduras
militares. Ningum se inquieta com as candidaturas caudilhescas.
Ningum se acautela, se defende, se bate contra as ditaduras do
Poder Executivo. Embora o Poder Executivo, no regimen
presidencial, j seja, de sua natureza, uma semiditadura, coibida
e limitada muito menos pelo corpo legislativo, seu cmplice
habitual, do que pelos diques e freios constitucionais da justia,
embora o Poder Executivo seja o errio, o aparelho
istrativo, a guarda nacional, a polcia, a tropa, a armada,
o escrutnio eleitoral, a maioria parlamentar. Embora nas suas mos
se renam o poder do dinheiro, o poder da compensao e o poder
das graas. Seja ele embora, entre ns, o poder dos poderes, o
grande eleitor, o grande nomeador, o grande contratador, o poder
das bolsas, o poder dos negcios, e o poder da fora, quanto
mais poder tiver, menos lhe devemos cogitar na ditadura, atual,
constante, onmoda, por todos reconhecida, mas tolerada,
sustentada, colaborada por todos. Deste feitio, o presidencialismo
brasileiro no seno a ditadura em estado crnico, a
irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a
irresponsabilidade sistemtica do Poder Executivo". Ora, por
mais acachapante que seja esse libelo contra a irresponsabilidade
presidencial, preciso reconhecer que, hoje, ele est aqum da
realidade. Atualmente, o Presidente da Repblica no se limita a
exercer um poder absoluto no ramo executivo do Estado: ele tambm
legislador, e dos mais prolficos. O volume de medidas provisrias
editadas e reeditadas, a maior parte delas sem a menor relevncia
ou urgncia, j ultraa largamente o nmero de leis votadas
pelo Congresso Nacional, desde a promulgao da Constituio.
Para a convalidao espria desse abuso, concorreu
decisivamente a mais alta Corte de Justia do Pas. Neste perodo
crespuscular do Estado de Direito, o Supremo Tribunal Federal,
cuja funo precpua "a guarda da Constituio"
(art. 102), tem transigido com todos os desvios, relevado todas as
arbitrariedades, itido todas as prevaricaes. A p de cal
na indispensvel independncia do Supremo Tribunal Federal para
custodiar a inviolabilidade da Constituio foi lanada com a
Emenda Constitucional n 3, de 1993, instituindo a "ao
declaratria de constitucionalidade" (art. 102 - I, a). O
judicial control, sem sombra de dvida a maior criao
constitucional dos norte-americanos, surgiu como instrumento de
defesa dos direitos individuais contra o mais nocivo dos abusos
polticos, aquele que associa Legislativo e Executivo na comum
infringncia da Constituio. No sistema presidencial de
governo, com efeito, a lei no apenas o ato do Poder
Legislativo: ela conta tambm, necessariamente, com a aprovao
do Executivo, que tem o poder de vet-la. Quando o Presidente da
Repblica sanciona uma lei inconstitucional, ele se acumplicia
com o legislador na violao da Carta Magna. Ora, a "ao
declaratria de constitucionalidade" veio subverter
inteiramente os termos dessa equao poltica. Ela no uma
defesa da cidadania contra o abuso governamental, mas, bem ao
contrrio, uma proteo antecipada do Governo contra as
demandas que os cidados possam ajuizar para defesa de seus
direitos. uma espcie de bill de indenidade que o Judicirio
outorga aos demais Poderes, um nihil obstat legitimador da ao
governamental, antes que os cidados tenham tempo de reclamar
contra ela. Por isso mesmo, o processo dessa aberrante demanda
sui generis: no h contraditrio, porque no h lide. Em se
tratando de argio de inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo, o Procurador-Geral da Repblica deve ser previamente
ouvido, e o Advogado-Geral da Unio defende o ato ou o texto
impugnado (art. 103, 1 e 3). Mas no processo da ao
declaratria de constitucionalidade, os autores agem sem
contraditrio: o Governo tem as mos livres para demandar, sem
que ningum defenda os interesses dos governados. Por fora
desse vicioso mecanismo, a nossa Corte Suprema deixa de ser um
tribunal, para se tornar um rgo oficial de consulta. Troca a
posio de guarda da Constituio pela de colaborador do
Governo.
4. No bastou, porm, para saciar
o apetite de poder, a consolidao e ampliao do poderio
presidencial com o acrscimo da funo de legislar. Antes,
segundo a tradio latino-americana, tnhamos uma ditadura,
apesar de tudo, temporria. Era preciso quebrar o ltimo dique
que impedia a invaso do arbtrio completo no terreno
governamental. A emenda constitucional n 16, de 4 de junho de
1997, introduziu em nossa estrutura poltica, mais de um sculo
aps a constitucionalizao do regime republicano, a reeleio
dos chefes de Executivo. O que importa considerar, aqui, para
caracterizar a aberrao da mudana, no a confessada
venalidade de alguns parlamentares na votao da emenda,
atendendo aos "apelos cvicos" de um falecido Ministro
de Estado, que era o fac totum do Governo. O que cabe ressaltar
a escandalosa inconstitucionalidade formal dessa reforma da
Constituio. Segundo o disposto em seu art. 60, 2, "a
proposta (de emenda) ser discutida e votada em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos". escusado assinalar
que a mesma proposta que deve ser submetida a dois turnos de
votao, na Cmara e no Senado. Ora, a proposta original
daquela que seria a 16 emenda Constituio foi alterada no
segundo turno de votao na Cmara.7 Em seguida, essa redao
alterada, submetida apreciao do Senado, foi modificada pela
segunda vez, sendo imediatamente promulgada. A lio desse inslito
procedimento bem clara. Para o Congresso Nacional, a Constituio
da Repblica vale menos que uma lei ordinria. Em relao a
esta, com efeito, ainda se observa a regra constante do art. 65,
pargrafo nico, da Constituio, segundo a qual "sendo o
projeto emendado, voltar Cmara iniciadora". As emendas
constitucionais, ao contrrio, deixam doravante de obedecer a
esse rito de segurana elementar, sinal evidente de que, como foi
assinalado no incio destas consideraes, estamos simplesmente
a dissecar um cadver. O pior, no entanto, ainda estava por vir.
Ao responder Consulta n 327 do Distrito Federal, o Tribunal
Superior Eleitoral, pela Resoluo n 19.952, de 2 de setembro
de 1997, entendeu que os chefes de Poderes Executivo no precisam
renunciar ao mandato seis meses antes, para concorrer reeleio.
Estabeleceu-se, com isto, a definitiva cretinizao do processo
hermenutico. Contrariamente ao princpio primeiro de toda
interpretao jurdica, um texto h de ser entendido em sua
primria literalidade, sem a menor ligao com o contexto
normativo e sem submeter-se tampouco aos princpios fundamentais
do ramo jurdico em que se insere. Temos, pois, que se o
Presidente da Repblica, num o inslito de humildade,
decidir concorrer ao cargo de Prefeito de Ibina (SP), Municpio
onde tem sua casa de campo, precisar renunciar presidncia
da Repblica. Mas se pretender a reeleio para o mesmo modesto
cargo que ocupa, pode tranquilamente enfrentar o pleito e
continuar liberando verbas oramentrias, nomeando e demitindo
Ministros e funcionrios, sem deixar de frequentar nem um s dia
o conjunto dos meios de comunicao de massa. Ao comentar nossa
primeira Constituio republicana, o austero Joo Barbalho teve
palavras candentes para profligar a idia de reeleio do
Presidente da Repblica: "De que poderosos meios no poder
lanar mo o presidente que pretender se fazer reeleger ?
itir presidente candidato expor o eleitorado presso,
corrupo e fraude na mais larga escala. J de si a eleio
presidencial engendra no pas agitao no pequena e temerosa;
e o que no se dar quando o candidato for o homem que dispe
da maior soma de poder e fora, pela sua autoridade, pelos vastos
recursos que pode pr em ao para impor a sua reeleio ? E
que perturbao na istrao pblica e que enorme prejuzo
para o pas no emprego de elementos oficiais com esse fim !"
8 E se ainda esse colossal malefcio ficasse adstrito presidncia
da Repblica. No. Doravante, todos os Governadores e Prefeitos
pelo pas afora, transformados em rgulos de provncia, vo se
aboletar nos respectivos cargos por pelo menos oito anos, sem o
incmodo da desincompatibilizao. a volta alegre e
consolada aos privilgios do ancien rgime !
5. Acabei de falar na perspectiva
de Governadores e Prefeitos se aboletarem nos respectivos cargos
por pelo menos oito anos. Faltou dizer que essa perspectiva
ainda mais segura para o Presidente da Repblica. A razo
simples. J foi aprovada por unanimidade, na Comisso de
Constituio e Justia da Cmara dos Deputados, o projeto de
emenda constitucional n 554-A, de 1997, pelo qual "os
Membros da Cmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-o
unicameralmente em Assemblia Nacional Constituinte, livre e
soberana, no dia 1 de fevereiro de 1999, na sede do Congresso
Nacional", para alterar vrios dispositivos da Constituio,
notadamente o art. 14, justamente o que trata das
inelegibilidades. A essa proposta, apresentada como aditivo ao Ato
das Disposies Constitucionais Transitrias, a Comisso
acrescentou, por emenda do relator, que "no dia 4 de outubro
de 1998, por plebiscito, o eleitorado decidir sobre a atribuio,
aos Membros do Congresso Nacional, dos poderes constituintes de
que trata este artigo". Bem se v, pois, como ficou dito no
primeiro perodo destas observaes, que a Constituio
Federal de 1988 j tem sua morte anunciada para a vspera do seu
dcimo aniversrio natalcio. Intil relembrar o comezinho
princpio de que as disposies transitrias de uma lei, ou de
uma Constituio, no podem, nem lgica nem juridicamente, ser
retomadas ou ressuscitadas, como se tratasse de um filme de fico
cientfica: uma volta para o futuro. Aquilo que o constituinte
marcou como um perodo de transio de um regime constitucional
a outro no pode ser reconsiderado, depois de encerrados os
trabalhos constituintes. O caso ora em questo representa, alis,
uma reincidncia especfica no mesmo delito constitucional. J
a emenda n 12, de 15 de agosto de 1996, alterou o Ato das
Disposies Constitucionais Transitrias. O que causa espanto
ver que nenhum deputado da oposio havia 16 do PDT, 4 do
PT, 4 do PSB e 5 do PPS na Comisso de Constituio e Justia
manifestou a menor hesitao em executar assim,
sumariamente, o corpo de normas cuja funo primeira, como
lembrado acima, a de proteger os direitos humanos e, por
conseguinte, os direitos da minoria na arena poltica. No.
Todos se contentaram, como crianas apalermadas, com a oferta do
doce envenenado de um plebiscito, que na verdade um referendo
popular. O que marca a rigidez de uma Constituio a exigncia
de que sua reforma, por via de um poder constitudo, como o
Congresso Nacional, s possa ser feita com ou sem aprovao
direta pelo povo nos limites estritos do que ficou
estabelecido no texto a ser reformado. E esses limites
correspondem, no caso da Constituio de 1988, no s ao que
consta do art. 60, 4, mas tambm aos princpios
fundamentais que enformam o texto constitucional. Ora, princpio
bsico de toda Constituio rgida que o povo, por via
referendria, s possa manifestar-se, legitimamente, sobre a sua
reforma parcial, quando essa reforma foi decidida por quem tinha
competncia para faz-lo e segundo o procedimento formalmente
prescrito pela Constituio. Nunca demais repetir que, no
regime democrtico, at o povo soberano sofre limites no exerccio
de seus poderes. Se o povo ou, a fortiori, os seus representantes
pudessem alterar uma norma constitucional ao seu alvedrio, o
Estado de Direito seria mera fico. Pois bem, no ventre desse
repulsivo monstrengo, encontra-se, como no poderia deixar de
ser, a possibilidade de reforma do art. 14 e textos
"conexos", como se diz na proposta de emenda
constitucional n 554-A. No toa que o Presidente da Repblica
declarou-se (docemente constrangido, como de seu feitio) favorvel
proposio. E no tenhamos dvida de que, se se decidir
suprimir do texto do art. 14, 5 a expresso final "para
um nico perodo subsequente", o Supremo Tribunal Federal
convalidar a desfaatez, assinando o atestado de bito da
Constituio. Na democracia ateniense, existia um processo
punitivo especial para propostas de lei ou deliberao que
contraviessem aos princpios fundamentais do regime: era o graph
paranomon.9 Qualquer cidado tinha o direito de embargar uma moo
a ser votada pela assemblia do povo (ekklesia), alegando que ela
feria a politia, ou constituio da cidade. A votao era
ento suspensa e a questo submetida a um rgo judicial. O
mesmo ocorria com decises j tomadas pela assemblia, de
natureza legislativa ou no. Se a alegao do denunciante fosse
julgada procedente, o autor da moo ou do projeto de lei era
condenado a uma multa, anulando-se a votao eventualmente j
concluda. A pessoa condenada trs vezes por esse delito perdia
seus direitos cvicos. Na Atenas clssica, a Constituio da plis
era objeto de uma venerao quase religiosa. Aqui a Constituio
tende a ser, sempre mais, uma colossal medida provisria.
6. O eminente Professor Sampaio Dria,
que foi catedrtico de direito constitucional na Faculdade de
Direito da Universidade de So Paulo, iniciou a primeira aula do
segundo semestre letivo de 1938, lembrando que o programa de sua
disciplina era dividido em duas partes, correspondentes a dois
semestres letivos. Na primeira parte, expunha os princpios
fundamentais do direito constitucional. Na segunda, fazia um breve
comentrio da Constituio em vigor no pas. Acrescentou o
velho Professor ter ouvido dizer que, em 10 de novembro de 1937, o
Presidente da Repblica havia cancelado a Constituio
vigorante e publicado outra, mas que no lera nem pretendia ler o
texto desta ltima. Em consequncia, pediu a seus alunos que
relevassem a sua ausncia durante o semestre letivo que se
iniciava, pois no teria condies de explicar o sistema
constitucional que se dizia em vigor no pas. Escusa dizer que o
honrado Mestre foi sumariamente demitido de sua ctedra e teve
que procurar refgio no estrangeiro. Diante desse luminoso
exemplo de inteireza de carter, que o prezado leitor escuse a
pergunta impertinente: Quantos professores de direito, hoje no
Brasil, tero a coragem de protestar de pblico contra o assassnio
anunciado da Constituio de 1988?
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